quinta-feira, 3 de junho de 2010

Julgamento, Moral e Ética

Faço o post de hoje a partir de uma reflexão sobre o artigo de João Pereira Coutinho, articulista que escreve na Folha de São Paulo e que admiro muito pela inteligência e habilidade de escrever, mas com o qual discordo em vários aspectos.

A coluna em referência está abaixo,
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/735598-o-canibalismo-e-relativo.shtml
e narra uma gafe política do primeiro ministro da Nova Zelândia em um comentário sobre o canibalismo, que era exercido tempos atrás pelos povos Maori.

Curiosamente, no meu grupo de estudos de Psicologia Analítica dessa semana o tema tambem esteve presente. Uma colega trouxe informações de um documentário onde uma certa tribo enterra crianças defeituosas, vivas.
A princípio repugnante (enterrar crianças vivas), o ato pode ser entendido tambem em termos simbólicos como uma tentativa de "devolver à terra" aquilo que não foi bem formado.
Pode, tambem, ser lido pela referência evolucionista de sobrevivência dos mais aptos e de eliminação de características que possam influenciar negativamente na economia da tribo ou em seu patrimônio genético.

A conclusão adjacente é que os atos de uma cultura diferente da nossa podem ser vistos de várias formas, mas todas essas formas trarão viéses de interpretação. Ou seja, eles podem ser vistos e entendidos, mas não podem ser julgados.

E, já que julgar supõe a capacidade de interferir, chegamos à conclusão que seria ilícito interferir em ambientes culturais que não os nossos, sob pena de impingirmos à cultura que recebe a interferência um valor (e um desejo) extrínseco à sua compreensão e capacidade de assimilação.

Podemos julgar o canibalismo dos maoris?, podemos julgar a tribo que enterra crianças?, podemos julgar as culturas que praticam a mutilação feminina?

Não há uma resposta. E isso me lembra um antigo professor que dizia que toda vez que encontramos uma questão, na área de humanas, sem resposta, estamos diante de uma questão ética.

Minha tendência é achar que é lícito interferir no sentido de se atenuar o sofrimento humano. Sempre.
E para sustentar essa proposição minha idéia é de que a questão não seja o "se", mas sim o "como" fazê-lo.

No nosso grupo de estudos chegamos à conclusão que diferentes níveis de consciência podem levar a diferentes visões de mundo, e essa é uma ferramenta poderosa (que, diga-se de passagem, não está disponível em outras vertentes da psicologia).
Vou voltar ao tema no futuro mas, simplificando muito e introduzindo a questão, posso dizer que a consciência se estrutura em diversos níveis: "materno", "paterno", "alteridade" e "cósmico" (referências dos neo-Junguianos Erich Neumann e Carlos Byington).
Uma cultura num estágio de consciência primitivo pode utilizar o sacríficio e a mutilação de um "outro" como símbolo de desejos de prosperidade e de afastamento do mal. Ao passo que uma cultura com níveis de conciência menos primitivos, em estágio de alteridade, tende a priorizar a empatia com o "outro" e refugar símbolos em que esse outro é sacrificado.

Portanto a questão do como interferir, para evitar o sofrimento, é uma questão de como permitir à cultura em questão mudar seu nível de consciência, se esse for seu desejo e sua possibilidade.

Como já disseram várias pessoas, escola e trabalho são os melhores anticoncepcionais que existem.
Prover cultura e desenvolvimento, reforçando a capacidade de escolha do indíviduo, é a melhor forma (e talvez a única forma ética) de interferir positivamente, e fazer isso abrindo mão do desejo de julgamento.
    

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Chronotopus 1 - Israel e Palestina

Talvez eu venha a usar muitas vezes, aqui, a primeira parte do título dessa postagem. Mas provavelmente (espero) não voltarei ao tema Israel-Palestina em breve.
Esse post, de certa forma, complementa e encerra o de ontem.

Eu fui apresentado ao Chronotopus, ou "хронотоп", num seminário aqui em São Paulo realizado pelo professor Gilberto Safra, psicanalista que influiu muito na minha formação como psicólogo e continua a me influenciar como profissional.
O termo se refere a uma construção subjetiva de um filósofo e filólogo russo chamado Mikhail Bakhtin. E deriva de dois radicais gregos que, separados, poderiam ser traduzidos por "tempo-espaço".
Segundo seguidores de Bakhtin o cronotopo é "uma unidade de análise" para estudar a linguagem de acordo com a relação e as características das categorias temporais e espaciais representadas num dado idioma. Chronotopos específicos correspondem a gêneros específicos ou maneiras relativamente estáveis de falar, os quais representam visões de mundo particular ou ideologias. Dessa forma, um chronotopo é um conceito e uma função cognitiva da linguagem narrativa.

Para facilitar o entendimento, podemos pensar o chronotopus como um cruzamento de dois eixos, no centro dos quais se localiza o foco existencial do indivíduo pensante.
Num dos eixos (o horizontal) se localiza, à esquerda, o "passado" do indivíduo, seus referenciais de construção teórica. À direita do mesmo eixo se encontra o "futuro", ou seja as referências temporais que se espera construir com o pensamento.
No outro eixo (o vertical) se localiza, acima, a "subjetividade", e abaixo a "objetividade".

A idéia é pensar nas nossas construções mentais, nos nossos pensamentos, nos nossos atos, como se estivéssemos no meio desses dois eixos. Olhamos para trás, para saber quem somos e qual o mundo que nos constituiu. Olhamos para frente, para saber quem queremos ser e como deverá ser o mundo que queremos criar. Olhamos para cima, para entender valores, crenças, idéias. E olhamos para baixo para perceber a realidade concreta, os limites, o contexto material da existência.

A construção é util, creio, para uma série de objetivos. Um deles é encontrar a referência de raciocínio ou equação de um determinado problema.

Por exemplo: ao se analisar os artigos discorrendo sobre o confronto entre militares israelenses e ativistas pró-palestina, de segunda-feira, notamos o seguinte: a principal referência para a ação, e para a análise, é (foi!?) o passado e a subjetividade. 

As discussões a favor da "versão" (os filtros mentais, que abordei ontem), de ambas as partes, são referenciadas fundamentalmente no passado do conflito dos povos, e no sofrimento subjetivo causado por esse passado.
Como não se olha para o futuro com a mesma intensidade com que se olha o passado, e para a realidade objetiva com a mesma força da subjetiva, as ações perdem seu contexto lógico.

Ou, dizendo de outra forma, poderíamos colocar a questão da seguinte forma: os ativistas, e os militares que os detiveram, se baseiam mais no medo (valor subjetivo) e no conflito (passado), ou no desejo de criar um ambiente seguro (futuro) e nos resultados esperados (objetivos)?.

Olhando dessa forma, podemos ver que os ativistas se preocuparam com o futuro e a objetividade (a libertação de Gaza e as condições de vida de quem está morrendo por lá), mas as forças armadas israelenses enxergaram o ato através das lentes do passado (o evento estaria sendo apoiado por terroristas) e da subjetividade (afronta ao embargo da faixa de Gaza).
Não por acaso, os articulistas que defendem a posição de Israel se baseiam nos mesmos valores nas suas dissertações.

O nosso presidente, em sua ingenuidade, disse que o que resolverá os problemas do Oriente Médio é "comida, trabalho e negociação". Parece tolo, mas eu fico pensando: não haveria aí uma dose de perspectiva futura e realidade concreta, que talvez esteja faltando para as partes imbricadas?

terça-feira, 1 de junho de 2010

Filtros Mentais

Estive esses dias às voltas com sentimentos, sensações e informações conflitantes a respeito do "acidente" envolvendo as forças armadas Israelenses e o comboio de ajuda humanitária para Gaza.

Tudo corria razoavelmente bem, entretanto, até uma amiga minha postar no twitter um link para a revista Veja (argh!) sob o pretexto de fornecer "uma outra visão dos fatos". Aí eu precisei escrever esse post.

Minha amiga é judia, e a "outra visão dos fatos" traz um comentário de um articulista que é no mínimo tendencioso. Chega a ponto de justificar a ofensiva a partir de considerar o comboio uma afronta à soberania Israelense, ignorando o fato anterior de Israel ter se apossado ilegalmente daquela região e ter reduzido-a a terra arrasada (criando assim, sob a justificativa de se proteger de terroristas, um celeiro de futuros terroristas...).

Mas isso, de fato, pouco importa na minha reflexão. A pergunta que me assola é a seguinte: é possível fazer uma observação isenta a respeito de fatos complexos como o conflito arabe-israelense?
Acredito que não...
Me lembro do princípio de Eisenberg e, apesar de estarmos longe da física quantica, creio que aqui tambem o observador influencia o resultado do experimento.
Minha justifica para essa impressão deriva de dois fatos:

1- O conflito em questão é tão antigo, tão complexo, envolvendo estigmas, lutas, segregação, genocídios... que se torna quase impossível uma análise de "fatos". Afinal, os fatos atuais são referenciados a sentimentos relativos a fatos anteriores, e anteriores, e anteriores... remontando a um período de milhares de anos. Uma análise isenta dos fatos demandaria, portanto, uma coleção de conhecimentos impraticável.

2- O ser humano tem uma tendência, ou uma necessidade, de elaboração através da explicação e decupação lógica dos fatos. Mas fatos complexos, por não permitirem essa decupação, exigem de quem tenha a ânsia da elaboração um referencial afetivo que possa preencher as lacunas lógicas. É aí que, sem percebermos, elaboramos estruturas cognitivas que visam não a explicação e análise do fato, mas a sustentação do afeto utilizado para dar conta do mesmo.
No caso em questão, utilizamos fundamente dois tipos de afeto: a empatia com a dor do povo palestino, que sofre com a perda de seu território, sua soberania, sua dignidade, sua vida... e a empatia com a dor do povo judeu, que sofreu muito, e durante muito tempo, com a perda de seu território, sua soberania, sua dignidade, sua vida.

Aqui, um fato complexo, impossível de ser reduzido, acaba ganhando contornos afetivos, moderados pelo medo e a dor. Medo e dor que demandam defesa e sustentação, que demandam a "versão dos fatos" que nos seja a mais conveniente.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mentira e Dostoiévski

Hoje é Primeiro de Abril, dia da mentira, “April’s fool day”.


Tema para o post de um blog, pois não!

Então vejamos: porque haveríamos de cultuar um “dia da mentira”?

A primeira coisa que me veio à mente foi o lugar comum: exercitar o lúdico e divertir-se com a capacidade de criar algo que engana o outro (um pequeno exercício de poder sádico).

Mas depois, pensando melhor, vaguei por um caminho diferente: e se a mentira for uma parte essencial da vivência humana? E se, para dizer de outra forma, precisamos da mentira para sobreviver? E se o dia da mentira for a celebração de algo que PRECISAMOS fazer cotidianamente, não só para os outros como para nós mesmos?

Pensando nisso me veio à mente uma frase de Dostoiévski: “A verdade, para ser palatável, precisa ser misturada com um pouco de mentira”.

Se isso for verdade o dia da mentira é um dia em que podemos enganar livremente os outros e que serve, alem de diversão, como catarse para todos os outros dias do ano, em que precisamos enganar a nós mesmos como forma de manter nossa sanidade.

E como nos enganamos?
- Dando importância ao que não é importante.
- Dando importância demais a nós mesmos (cultuando nosso narcisismo)
- Imaginando que o mundo se resume ao que conhecemos.
- Criando artifícios, religiões e fantasias para não encarar a dor da falta de sentido da vida.
- Acreditando que a vida pode ser segura e asséptica.
- Acreditando que podemos eliminar de nós a parte do que é ser humano que nos incomoda.
- E etc.

Tarefas hercúleas tendo que ser exercitadas 364 dias por ano...
Que bom que, de vez em quando, tenhamos licença para mentir... livremente e sem culpa.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Preocupação com o cliente

Num grande supermercado de São Paulo, eu distraidamente olhando uma gôndola, se aproxima uma funcionária de prancheta na mão.

O diálogo:
Ela - "Oi!! O senhor sabia que tá na hora de fazer economia???"
Eu - "!!??"
Ela - "Vamos fazer o cartão xyz?" (voz nervosa, sorriso tenso, tentando lembrar o script)
Eu - "Não, obrigado."
Ela - "Mas tá na hora de fazer economia!!! O senhor não quer fazer economia??" (mais tensa, apertando a prancheta)
Eu - "Não, ooobrigado" (tambem tenso, gaguejante, procurando uma rota de fuga)
Ela - (dentes crispados, expressão de raiva) "Moço! Tá na hora de fazer economia!!! Vamos fazer o cartão???"
Eu - (catatonico) "Não, obrigado" (entrei, por defesa, no modo profissional, e comecei a avaliar os traços de ruptura psicótica, imaginando se a moça estava nesse estado por causa de violência familiar ou do programa de treinamento do supermercado).
Ela - "Ah! Moço!..."

Apertou a prancheta e saiu raivosa.
Uma vitória do lobo pré-frontal. Uma derrota para o atendimento ao cliente.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Caminhos

“We shall not cease from exploration, and the end of all our exploring will be to arrive where we started and know the place for the first time.” T. S. Eliot

O poema me lembrou uma frase que o Prof. Gilberto Safra usa constantemente em suas palestras: resgatar a memória do humano.

Será que, de fato, a vida é uma jornada que leva ao começo?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Privacidade - parte 1

Leio hoje um artigo do sempre interessante articulista João Pereira Coutinho (disponível no http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/joaopereiracoutinho/ult2707u696891.shtml), sobre Tiger Woods e a privacidade.
Esse é um tema que tem me assaltado há alguns dias e por dois motivos:
- o primeiro, a própria idéia de publicar esse blog, um espaço onde eu possa trocar idéias com amigos e articular meus pensamentos e que, de algum modo, coloca em cheque para mim o limite de até onde um psicologo pode se expor ou deve se obrigar ao "low profile";
- o segundo, pela mudança do conceito de privacidade num mundo em que a todo momento somos filmados, fotografados, "blogados", "twitados", "formspringados" e etc. (voluntariamente ou não).

Por vicio de formação sempre que me vejo nesse tipo de dilema defendo o caminho do meio (meden agan), porem esse nem sempre é fácil de se encontrar.

Do ponto de vista técnico, há muito está conceituado o principio de transferência e contratransferência como parte fundamental do processo de psicoterapia.
Isso equivale a dizer que, de certa forma, a exposição do terapeuta ao paciente "rouba" desse último um espaço projetivo, criativo, de apropriação e transformação da figura do analista.
É fundamental que o analista permita que seu paciente o crie e, portanto, há um limite para a exposição. Se essa exposição é tal que o terapeuta não fornece espaço para o paciente, então o mesmo pode estar se inviabilizando.
Porem, vale a pena lutar contra as investidas do paciente e/ou se privar das capacidades fornecidas pela tecnologia atual? Penso que não.
Ou, pelo menos, penso que depende da abordagem terapêutica.
Aqueles psicólogos que priorizam o posicionamento do analista no processo terapêutico devem fazer o sacrifício e se abster da exposição.
Mas aqueles que priorizam o "gesto" não podem e não devem ir pelo mesmo caminho. Pela simples razão de que, antes de tudo, o paciente vai procurar nesses a referência de sinceridade e possibilidade de existir sem o falso self.
Na minha clínica meu paciente, ou meu cliente, deseja antes de tudo interagir com outro ser humano. Um que o acolha integralmente, mas tambem alguem que tenha idéias, desejos, fantasias, vida!
Dentro dessa interpretação, diria que eu não posso me abrir para meu paciente, mas tambem não posso me fechar. Me fechar totalmente seria a negação de minha identidade, prejudicando o atendimento tanto quanto no excesso de abertura.
Penso que os pacientes sempre nos prescrutaram. Só que, agora, alem dos títulos, do consultório, da aparência física e de tantos outros atributos com os quais os pacientes especulam os analistas, juntaram-se os perfis em redes sociais, blogs e etc.
Nosso desafio, ao invés de fugir dessas ferramentas, é permanecer íntegros, mesmo expostos a elas.

Bem, e a parte da privacidade como conquista social, como prega Coutinho?
Sobre isso falo depois. Ou não! (se eu desejar manter meus pensamentos privados...)